segunda-feira, 27 de maio de 2013

O Vitimismo (?) de Cláudia Regina

Eram umas duas e meia da manhã.

Roberta estava sozinha na rua. O frio lhe cobria as pernas nuas como lã de gelo. Seus cabelos se encontravam soltos, dependurados pelas têmporas. O passo apressado e o olhar alerta eram sintomas do terrível pânico que lhe assomava. De repente, no beco adiante, em meio a uma pálida luz amarela do velho poste, surgem dois homens. Um maior vestindo um capuz, robusto, e outro menor, mais franzino, de tez mais escura. Eles se aproximam lentamente e os passos parecem tomar uma rota definida em sua direção. Roberta estremece e seu coração palpita na garganta. Próximos pelo menos uns três metros, Roberta desvia o olhar e acelera o passo na direção da parede, se afastando da linha na qual os dois se equilibravam. Entretanto, ouve-se um assobio. Era a famosa e efêmera canção masculina da sedução: “fiu-fiu”. Os dois viram-se rapidamente em direção de Roberta e o mais alto comenta ruidosamente “Tá sozinha a essa hora, boneca?”. Eles vão embora, às gargalhadas. Roberta, aliviada segue seu caminho.

A situação é fictícia, mas a essência é rotineira na vida de uma mulher. O pavor sentido por Roberta também. Mas ele é normal? Li recentemente um texto escrito por Cláudia Regina, intitulado “Como se sente uma mulher”, postado no blog Papo de Homem cuja recepção foi rodeada de críticas das mais severas. O texto fala do sentimento de ser mulher na sociedade moderna. Discursa sobre estupro, assédio, machismo e liberdade sexual. Nada anormal. Porém os comentários que discordavam do texto me chamaram atenção.

Os comentaristas apelaram para um termo interessante: Vitimismo. A oração seria de que o texto era dramático e possuía uma alta carga de autopiedade e vitimização da mulher dentro das circunstâncias apontadas no texto. Os críticos – vejam ora essa, homens – acusavam a autora de usar o discurso de “coitadismo” para não alegar a própria torpeza. Vamos analisar o porquê desta reação coletiva masculina contra o texto.

Primeiramente, vou deixar claro que a reação não se atrela ao machismo. Como? O machismo tem como um dos seus princípios de que a mulher é inferior ao homem. A válvula de razão do coitadismo se respalda no conceito machista do ser feminino. A nossa reação está muito atrelada à nova realidade e organização social: A igualdade dos sexos. Essa nova ordem social afeta e muito o modo como os homens veem as mulheres. O pé de igualdade torna as mulheres seres humanos como os homens enxergam a si próprios. Porém a forma que os homens se enxergam difere em muito do modo feminino. Entretanto - para os homens - qualquer discurso “sexista” que se respalda na diferença dos sexos é considerado absurdo.

Os homens se esquecem de que o mundo feminino é muito mais subjetivo do que o masculino. Muitas impressões sociais femininas são emocionais ou estão ligadas a conceitos complexos.

Um homem não admite estar errado quando assobia ou “canta” uma mulher na rua, pois o que ele vê são propagandas de esmaltes, tinturas, perfumes em que a mulher sorri quando isso ocorre. Um homem não admite o erro, pois toda mulher quer ser valorizada. Mas o mais importante é que o homem não admite que esteja assediando ninguém simplesmente porque “a mulher é forte” e “elas não são mais aquelas mulheres frágeis e delicadas”.

É tentador pensar que as mulheres são fortes emocionalmente falando, mas não pelo ponto de vista físico. O maior medo da mulher reside na sua fraqueza muscular naturalmente comparada à média masculina. Um homem consegue estupra-la usando apenas as mãos. Às vezes, se dispensa o uso de armas de fogo. A mulher sabe que se ela reagir pode ser muito pior. Mas e quanto às cantadas na rua? O caso aqui é semelhante, apenas não é físico. A mulher não vai reagir violentamente à cantada – salvo exceções –pois considera que será alvo de agressões verbais e até mesmo físicas. Acontece que o ato invade seu espaço íntimo. Cantada é diferente de elogio. Um elogio você pode referir também à mãe ou a irmã. A cantada tem um cunho sexual preponderante. Não se pode negar que uma mulher pode se sentir valorizada, mas às vezes o assobio ou cantada são seguidos de olhares nada educados. Nem toda mulher quer ser desejada sexualmente por um desconhecido para todos verem e ouvirem. Logo, isso é uma agressão sexual verbal e não verbal.

A mulher, na maior parte das vezes, não está vestida “para matar” por querer agradar a homens desconhecidos. Ela está assim para trabalhar porque pode ser maltratada por estar “mal vestida” ou “feia”. Seria algo assim: - Você é feia, mas com a roupa certa e a maquiagem bem feita pode melhorar. Você não se dá nem ao menos o trabalho de vir um pouquinho melhor para trabalhar? – Leia-se trabalhar, estudar, passear, comer, etc.

O princípio da alteridade é algo muito difícil para homens modernos. “Como eu vou me colocar no lugar de uma mulher se nós somos iguais?” Eles não conseguem mais.

A reação masculina ao que chamam de vitimismo é patética. Não há vitimismo. Há uma realidade e um sentimento coletivo. “Detesto esses discursos com gente choramingando por qualquer coisa”. O choro é para ser irritante mesmo, é para incomodar. É para causar não pena, mas comoção e apurar a sensibilidade humana. Não é sinônimo de fraqueza, mas de estrondo íntimo, aquele que utilizará não a sua capacidade de discernimento, mas a de compreensão e solidariedade. Faz sentido ser dificultoso para um homem se colocar no lugar de uma mulher quando ela se mostra forte, porém esta deseja que medos oriundos da fragilidade do seu mundo íntimo sejam compreendidos. O homem não entende, pois não é e, não sendo, julgará. Não se julga quando se é: Dá-se o veredicto.


E digo mais: Não se trata de um choro, mas de um uivo, pois está sendo respondido por todas as lobas que fazem parte da grande alcateia.

sexta-feira, 15 de março de 2013

Crônica: A Convidada

 

A CONVIDADA



Ela se sentia subjugada. Sim, era assim que ela se sentia, mas não sabia por quê. Olhando Alicia tão ruiva e alta a fez uma pessoa pior por dentro. O sol da tarde queimava as pálpebras que se fechavam como o seu punho. Estava sentada na calçada feita de pedras portuguesas, no solado da porta azul gigante, na Rua das Carambolas.  Seu vestido rendado se espalhava pelo chão, envolvendo suas carnes brancas e coxas duras.  A expressão marcava seu rosto num quase dizer “Perdi”. Alicia não notou sua presença em momento algum.

Doutro lado da rua estava Marlon, vestido de blazer e roupa social. Nas mãos um buquê e no rosto um tímido sorriso. Alicia apressou o passo e atravessou a pequena rua onde só passavam bicicletas, cães e crianças. O sol preenchia aquele momento da mais fina alegria a qual não contagiava somente a menina Pamela, ainda jogada no meio-fio, com olhos fixos na ruiva que atravessava o logradouro. Marlon já exibia um sorriso cheio de entusiasmo quando Alicia chegara do outro lado, onde ele estava. Eram felizes.

Pamela não poderia ter evitado aquilo. O casamento seria hoje à noite e os noivos estavam retumbantes e irritantes. A menina que sentava sobre o fustigante solo quente apertava os olhos para ver o amor de longe. O ruivo de Alicia soava como uma provocação com frieza e elegância. Marlon era aquele peixinho dourado que Pamela nunca tivera e talvez nunca mais terá. Ao menos que... Pamela queime os papeis da sua moral. Aqueles papeis que nunca tiveram uma real importância para ela, entretanto a impediam de cometer o avesso social.  E vendo que a vida era uma só e que esta era maior que a de todos os seres existentes neste universo, Pamela queimou, rasgou, cremou os papeis.

Pamela levantou-se, cambaleante, pisou no seu vestido de criança adulta e marchou com os pés pesados para o outro lado da rua, onde estava o casal feliz. Passou o cachorro vira-lata, a bicicleta veloz e a criança melequenta. Apertou o próprio coração contra a mão – não o contrário – e ergueu um vulcão que expelia coragem de sua cratera. O céu ficou repleto de cinzas em suspensão. O clima mudara. Pamela agora estava com uma armadura feita de titânio, encrustada de diamantes e ouro. Segurava um punhal de bronze na mão esquerda e um escudo de granito na direita. Um rio de lava escorria pelo meio da rua e abismos gigantes surgiram do chão que esfarelara ao redor do casal. Estando a menos de 2 metros de Alicia e Marlon, Pamela emitiu um brado de fúria, estremecendo o ar, tornando os planetas apenas pó e ouvindo um eco da voz de Deus saindo das nuvens negras das cinzas.

- Muitas felicidades pra vocês dois!

- Ah obrigada... Qual seu nome mesmo, querida? – Perguntou Alicia.

- Pamela, com um éle só. P-A-M-E-L-A.

- Lindo nome! – Disse Marlon.

- Que horas vai ser o casamento? – Indagou Pamela.

- 19h, Pamela. Você vai, não é?! – Intimou Alicia.

- Claro! Amo casamentos!

E assim se despediram. Pamela vencera. Seu punhal atravessara as duas carcaças ao mesmo tempo, atravessando os pulmões de ambos. O sangue jorrara por todo lugar e se misturara à lava tingindo o solo de escarlate. Pamela descera a rua com orgulho de uma guerreira invicta, segurando a cabeça de seus inimigos no lado convexo do escudo, como uma bandeja. Bramiu com todo o ar do mundo, de cabeça erguida para o céu, bem longe de onde derrotara seus oponentes:

- Eu não vou pra esse casamento de merda! QUE SE FODA!